sexta-feira, junho 29, 2007

A Favela é uma espiral problemática

“Quod me nutrit me destruit”

Pode-se dizer que é mesmo o caso. Não há meio-termo. As favelas são habitadas por milhões no Rio de Janeiro, são pobres, vivem das solidariedades e das dependências entre vizinhos, quando chove as barracas vão na enxurrada porque não flutuam, quando há derrocadas vai tudo abaixo, o aspecto da maioria é provavelmente mais degradado que o mais degradados bairros nacionais, têm “bocas” (onde se compra e vende droga), traficantes, guerras e rixas internas (verdadeiros cenários de guerra), há miséria, há regimes de clientela e há fome; mas também há dinheiro, armamento sofisticado, “segurança” (num conceito diferente do que imaginamos porque há balas perdidas e balas certeiras, matanças e perseguições, mas tudo “controlado”), negócios e “turistas” (compradores e até visitantes porque já há agências de viagem que tratam disso hoje em dia).

O dono da boca é o chefe, o traficante, o amigo, o “empregador”, o padre, o pai, o irmão, o amigo e o que garante a segurança na “área dele”. Um traficante pode controlar mais do que uma boca e gerir o “pedaço” (como eles dizem), ou pode ter apenas uma boca. Quando se tem apenas uma boca ou se está numa zona de muitas bocas e muitos traficantes ou está-se em maus lençóis, porque se um traficante tiver uma vasta área e houver uma só boca, “isolada”, está será um alvo fácil e preferencial para o grande detentor de “área”, que não terá sossego até a “conquistar”. Normalmente existem traficantes que “gerem” áreas consideráveis e “guerreiam entre si” caso se justifique. Pequenas guerras e conflitos armados entre o pequeno dono de uma boca e o “chefão” de uma área são comuns. Não é preciso muito para um “bando de miúdos” se rebelar e “tomar de assalto” a boca do seu “ex patrono”; mas normalmente custa-lhes caro depois (a vida). O responsável de uma boca responde ao traficante que gere a “área” e é o “dono” da boca (no fim de contas).

Se as favelas não forem seguras os “gringos” e os “endinheirados” não “às compras” e obrigam o “correio” a sair da favela, tornando-se inseguro para o próprio e para a favela em si, porque leva a que as entradas e saídas, mais expostas, atraiam as atenções e a polícia. O ideal é cada “macaco” no seu galho. São cada vez menos frequentes e mais arriscadas a incursões da polícia nos morros e nas favelas, uma vez que muitas vezes os maus da fita dispõem de melhor armamento e conseguem obter superioridade numérica, já para não falar que conhecem como ninguém os “cantos à casa”, surpreendendo a polícia a cada esquina e causando baixas. Os traficantes asseguram que não ocorrem nem pequenos nem grandes delitos no seio da favela, para que os clientes entrem e para manter a polícia afastada (não que a temam). Muitas vezes os miúdos, em tenra idade, bem como os mais crescidos, saem da favela e vão praticar roubos e outros pequenos, ou não, delitos na cidade, longe do olhar reprovador dos traficantes ou enviados por estes até para obter verbas ou seja o que for, porque há alturas em que se está “em guerra com o inimigo” e isso requer fundos e meios. Quando a coisa “suja” (ocorrem crimes) dentro da favela, por muito que custe, o responsável pela “mancha” onde ocorreu o incidente tem que agir de modo a servir de exemplo e desmotivar os demais, fazendo com que o responsável “pague” pelos seus actos. Isto por vezes gera inimizades e guerras internas entre facções do mesmo grupo dominante numa área, levando à dizimação do grupo e fazendo com que outro novo ou que já possuía a vizinhança se aposse da zona ou, levando a que apenas uma parte permaneça no “negócio” eliminando os restantes. Por ali a coisa é séria. Não há hipótese de falhar e ficar à espera de uma segunda oportunidade; a oportunidade de viver, por ali, só se consegue uma vez. Normalmente o chefe tem os seus “soldados” e nunca sai da sua “masmorra”, mas convive com os seus. A protecção aos locais e garantida e todos conhecem as regras que não se podem quebrar, mais do que aquelas que são desejáveis na convivência do dia-a-dia.

Poderíamos passar dias a discorrer sobre esta realidade, ali ninguém está só e todos “passam bem e mal”. O importante é que tudo isto é uma espiral, um encadear de coisas que se geram umas às outras e puxam tudo para si, como num remoinho. O traficante não sai da toca, mas as outras toupeiras “acarretam” o que faz falta para manter o “caos” instalado que acaba por funcionar como uma ordem, a única que conhecem e que evita um número ainda mais elevado de mortes. Há uns anos, toda e qualquer pessoa que entrasse na favela sujeitava-se a não voltar a sair, nos dias que correm tem-se uma “regra de ouro” que é não matar à sorte, não se pode “abrir fogo” em cima do carteiro, do polícia, do miúdo que vem da escola e não fez nada a ninguém, da senhora que vai levar os “bolinhos de bacalhau” à que mora mais acima, enfim… Tenta-se respeitar cada um, sobretudo quando se trata de gente inocente e que muitas vezes até está a fazer o seu trabalho. É um equilíbrio frágil, indecente, de olhos bem aberto e que “dá plantão”. Aqui também há lugar para as aspirações e para as ambições. Há festas, churrascos, música e desportos, há associações que trabalham com as crianças e as ajudam a ocupar os tempos livres da melhor forma possível. Alguns saem da favela para a vida, são normalmente bem recebido quando voltam de visita, mas nem sempre, pois já não são vistos como “da casa”; outros fazem a vida lá dentro. Quem quer subir na vida, mandar no “pedaço”, sair com as meninas bonitas ou ter a namorada que quer, sem ser ameaçado pelos demais, tem que subir no morro para subir na vida, transformando-se num dos “membros” vitais do traficante. Quando lá chegam eles “ajudam” os seus e fazem o melhor que podem e sabem pela justiça social, dão “emprego”, incentivam, aconselham, fazem caridade e, são importantes.

Perante isto tudo, como é que alguém pensa em acabar com o morro, a favela ou o traficante? As redes sociais estão criadas, o dia-a-dia acontece, há protocolos, normas e condutas éticas, sem que seja preciso fazer por isso, as teias funcionam quase automaticamente, é complicado para a máquina; eu diria mesmo que é quase impossível. Quando as “guerras” se sucedem há mortes e vive-se tal e qual num campo de batalha, mas acabar com isto, ninguém sabe como.

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